terça-feira, 7 de abril de 2009

Sinfonia

Por ali era evidente a passagem dos anos. A ausência de acção tinha marcado os tempos, contudo um enredo não precisa de atitudes físicas das personagens, basta que o silêncio se instale e oiçamos as melodias das suas existências, nem que sejam meramente figurativas. O piano…Há uns anos atrás, o seu mestre havia lhe dado a conhecer a composição de grandes compositores clássicos: Beethoven, Haydn e Mozart. A partir daí, a acção do homem sobre as suas teclas chegou ao fim. Hoje, não precisava que ninguém o tocasse, o piano vivia feliz. Digital, mas sentida, é a forma mais correcta para descrever a sua felicidade. Aquilo que o homem ensinou e desaprendeu, o piano adquiriu e usou racionalmente de acordo com as suas potencialidades. O piano sonhava com actos teatrais, sorrisos estampados, prados verdes, sem nunca deixar de lado o facto de ser um crítico distinto que sempre aprofundou argumentos. Naquela noite, como acontecia em todas as outras, o piano era a luz do mais cortês dos anfiteatros, representava uma sinfonia para todos os objectos daquele sótão. Nunca mais tocaram nas suas teclas, mas tocaram-lhe o coração para sempre.
A cadeira de madeira era o trapézio favorito do pó que nunca deixara de circular por ali. Lembrava os dias em que era polida pelo mais dedicado dos carpinteiros e as noites em que as pessoas ingratas se serviram de si como repouso. Não era difícil deixar de constatar tais memórias, mas a cadeira sempre renunciou ao esquecimento do seu passado.
A janela fechada, já assistira à hipocrisia das calçadas e dos céus. Agora que era "cega", pressentia um mundo com dificuldade em explorar o mais finito dos horizontes. Há milhares de sóis atrás, a janela contava á cadeira e ao piano, aquilo que via, sem querer ver. Estava mais atenta agora que “iluminava” um sótão, do que quando era vitima do encandeamento das sociedades. O piano, a cadeira e a janela apreciavam cada nota de um scherzo. Existiam, Competentes como sempre e sonhadores como nunca. Até o ranger das tábuas velhas lhes trazia tranquilidade…

Texto: Carlos Rodrigues

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