Nunca o vi vaguear de dia, como vagueou por todas aquelas noites...
Como acontecia todas as noites, saiu á socapa, pelas traseiras de sua casa. Os meus olhos seguiam-no da varanda com curiosidade. Nunca lhe havia conhecido o rosto, nunca lhe havia vislumbrado a cor do olhar. A sua boina sombreava-lhe todas as feições que nunca passaram de um enigma indesvendável para mim. Deslizou sobre o solo até pegar na sua velha bicicleta negra. Vi-o desaparecer na penumbra depois de ouvir o rangido do portão.
Desci as escadas com a respiração acelerada e abri a porta. Avistei-o no fim da rua, andando ao lado da bicicleta. Decidi segui-lo. Ouvia o som dos meus passos que tanto me esforçava para disfarçar e o meu coração que parecia querer saltar do peito. Andei durante minutos que me pareceram horas, até que ele parou em frente ao muro de um cemitério. Levantou-se um nevoeiro que me serviu de camuflagem gélida e petrificante.
O que se passou a seguir ficou-me na memória para sempre. Vi-o saltar o muro e aproximei-me do portão para espreitar. Foi então que ele tirou do bolso algumas sementes que atirou ao ar e imediatamente se espalharam por aquelas terras.
Num curto espaço de tempo os sepulcros desapareceram e deram lugar a um prado pintado por papoilas e malmequeres, a noite virou dia de céu azul e o tormento dos defuntos tornou-se a felicidade estonteante de borboletas e pássaros que giravam em torno da cabeça do velho homem.
Nessa Noite finalmente o reconheci, era Ninguém.
Texto:Carlos Rodrigues
Foto: Cláudia Silva
1 comentário:
Bem que texto oh Carlos! Até quase que me fez ter uma visão boa de um cemitério (coisa que nunca tinha acontecido).
Espectáculo :P
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